Programação

  • O corpo na escrita, na leitura e na tradução [15/06 – 28/06]

    Conhecimento se faz pelo corpo e ele é conhecimento do corpo.

    Paul Zumthor

    Objetivos:

    Ao final deste tópico, você poderá: 1) elaborar uma reflexão inicial sobre as relações entre escrita, tradução e performance; 2) pensar sobre a presença do corpo nessas distintas práticas; 3) refletir sobre o papel da voz no funcionamento do corpo social, seja em sociedades onde predomina a tradição oral ou em sociedades onde predominam a escrita e as mídias virtuais.

    Carga horária: 10h

    Apresentação do conteúdo:

    O escritor Severo Sarduy conta a Soler Serrano, em uma entrevista concedida no ano de 1976,[1] que escreve com a totalidade de seu corpo, que costuma dançar enquanto escreve e que há muito músculo em sua escritura. O poeta Ricardo Aleixo, finalista do prêmio Oceanos 2018, afirma também em uma entrevista que há “algo de físico na escrita, que pode ser chamado de performativo”;[2] a escritura com o corpo, ou a escrita corpográfica, se faz com a palavra ou sem ela, se faz com o gesto, o movimento, ou a vocalização de sons não-significantes. Como diz o poema de Aleixo: “Com o corpo, sei que grafo lá onde/nenhum “onde” é mais (ou ainda) possível,/ senão como imagem que se desfará/tão logo venha a ser percebida”.[3]

    Arnaldo Antunes, por sua vez, ao falar sobre a caligrafia, destaca sua íntima relação com o corpo, o quanto podemos conhecer de uma pessoa ou de um processo de escritura, a partir de sua letra, esse rastro do gesto: “força ou delicadeza, rapidez ou lentidão, brutalidade ou leveza do momento de sua feitura”. A caligrafia também marca uma entonação, um modo de leitura. “A caligrafia está para a escrita como a voz está para a fala,” diz Antunes, e completa: “a cor, o comprimento e espessura das linhas, a curvatura, a disposição espacial, a velocidade, o ângulo de inclinação dos traços da escrita correspondem a timbre, ritmo, tom, cadência, melodia do discurso falado.” [4]

    A leitura é, também, um encontro do corpo com a letra e o gesto, com a espessura, textura, peso das palavras, que devem ser pronunciadas, para as quais é preciso encontrar uma dicção, um ritmo e um timbre. Mesmo na leitura silenciosa e solitária há uma forte implicação do corpo, há um desejo de movimento. Como aponta Paul Zumthor:

    O que na performance oral pura é realidade experimentada, é, na leitura, da ordem do desejo. Nos dois casos, constata-se uma implicação forte do corpo, mas essa implicação se manifesta segundo modalidades superficialmente (e em aparência) muito diferentes, definindo-se com a ajuda de um pequeno número de traços idênticos. (ZUMTHOR, 2014, p. 38)

    A tradução, pensada como forma privilegiada de leitura crítica e como transcriação,[5] implica o corpo que traduz, como leitor/ouvinte que se deixa tocar pelo texto a ser traduzido, e como intérprete/tradutor/performer que dá novo corpo a esse texto. É nesse sentido que Flores e Gonçalves (2017, p. 23) nos colocam a possibilidade da “tradução pensável como um dom dos corpos.”



    [1] Referência complementar opcional: A entrevista completa para a Televisão Espanhola, no programa A Fondo encontra-se em: https://www.youtube.com/watch?v=_12rFRFX1Is (Acesso 02/06/2020).

    [2] Referência complementar opcional: Algo de físico na escrita, com Ricardo Aleixo. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=q5DkaBWceBg (Acesso 18/05/2020).

    [3] ALEIXO, Ricardo, “O poemanto: ensaio para escrever (com) o corpo”. In: SCHERER, Telma. “Ricardo Aleixo: o poeta em trânsito”, Revista Organon, v. 31, n. 61, 2016. pp. 1-16. Disponível: https://seer.ufrgs.br/organon/article/viewFile/65517/39344 (Acesso 18/05/2020).

    [4] ANTUNES, Arnaldo. “Sobre a caligrafia”, 20/03/2002. Disponível: https://arnaldoantunes.com.br/new/sec_textos_list.php?page=1&id=73 (Acesso 18/05/2020).

    [5] Na década de 1960, Haroldo de Campos apresenta suas reflexões sobre a tradução como (re)criação e como crítica. Campos menciona a frase de Subirat, tradutor de Ulysses, de James Joyce, para o espanhol: “Traduzir é a forma mais atenta de ler” (CAMPOS, 2006, p. 43).

  • Traduzir e Performar como atos de (re)criação, ressignificação, transgressão e/ou transculturação [29/06 – 12/07]

    FIGURA 1: Desenho de Alberto Beltrán. Cortesia de Diana Taylor. In: TAYLOR, 2013, p. 44

    FIGURA 1: Desenho de Alberto Beltrán. Cortesia de Diana Taylor. In: TAYLOR, 2013, p. 44.

    A forma se percebe em performance,

    mas a cada performance ela se transmuda.

    Paul Zumthor

    Objetivos:

    Ao final desta unidade, você será capaz de problematizar o conceito de original, bem como a noção de fidelidade ao original. Poderá refletir sobre a tradução como (re)criação ou transcriação e deslocar a concepção hierárquica que a submete a um original que deve(ria) ser imitado. As propostas de leitura também tem o objetivo de fazer pensar sobre as relações de poder no campo da cultura e sobre a prática da tradução (lato sensu) como ato político.

    Carga horária: 10h

    Apresentação do conteúdo:

    Diana Taylor (2013, p. 22) afirma que “a produção do conhecimento é sempre um esforço coletivo, uma série de conversas de um lado para o outro, que produzem resultados múltiplos.” Se pensamos na história colonial do continente americano, em particular o que se configurou como América Latina ao longo dos séculos XIX-XX, percebemos que tudo que conhecemos dos povos, línguas e culturas originárias nos chega por intermédio da tradução, uma vez que conquistadores europeus se empenharam em aprender línguas indígenas e ensinar suas respectivas línguas, com objetivos de catequização e imposição de seus modelos de civilização. Muitas das práticas incorporadas de indígenas, muitos de seus ritos, suas crenças, suas vestimentas, suas escrituras foram banidas, violadas, queimadas; porém, também há exemplos de tradições orais que foram transcritas e traduzidas, de línguas indígenas para o alfabeto latino e para a língua espanhola, como é o caso de alguns Códices coloniais, que permitem conhecer costumes, hábitos e crenças ameríndias, de algum modo, mediadas pela perspectiva europeia. Como na Figura 1, comentada por Taylor:

    "O informante falante de nauatle conta sua história para o escriba falante de nauatle, que, por sua vez, a passa para o tradutor, que a transmite para o escriba falante de espanhol, que fala para o frade espanhol, o receptor, organizador e transmissor oficial do documento escrito. [...] As versões mudam com cada transmissão; cada uma cria deslizes, falhas e novas interpretações que resultam em um original de certa forma novo." (TAYLOR, 2013, p. 23)

    A mudança, o deslize, a falha, a interpretação são destacadas por Taylor como interferências no texto de partida (mesmo sendo ele oral, como em alguns casos). Pode-se acrescentar também a censura, os cortes ou as omissões como recursos utilizados na tradução para fazer chegar ao destinatário um texto de acordo a seus preceitos, que no caso da Conquista, eram bastante unívocos quanto aos interesses da Monarquia e da Igreja Católica. A noção de original se torna vaga, imprecisa, pois ficam evidentes as interferências que podem ter sofrido as textualidades que restam desses processos de transcrição e tradução no período colonial.

    No século XVII, período em que se desenvolve o que se conhece por barroco latino-americano, podemos pensar, a partir de Lezama Lima, em uma “arte de contraconquista”, qual seja, uma arte capaz de articular de modo transgressivo, paródico, satírico, elementos das culturas europeias, africanas e ameríndias, que se encontram em intenso convívio e conflito nas sociedades coloniais. A apropriação transgressiva de modelos europeus e sua tradução criativa em algo novo, diverso, excêntrico, é o que Haroldo de Campos (2011) destaca como potência de transculturação do barroco latino-americano, marcando uma postura não submissa a um original que deve ser imitado. O original, como ponto de partida, torna-se um trampolim, um impulso para um salto e uma transformação.

    Haroldo e Augusto de Campos, junto ao movimento da poesia concreta, promovem, desde a década de 1950, o exercício da tradução criativa como um modo de “devoração crítica da poesia universal”, ou seja, um modo de traduzir para o contexto da literatura brasileira em língua portuguesa aquilo que consideram relevante de diversas tradições (não apenas europeias), preservando uma perspectiva não submissa de reescritura, de reinvenção. Baseado no lema de Ezra Pound, “make it new”, Haroldo de Campos destaca, desde 1960, o que entende por transcriação: “dar nova vida ao passado literário válido via tradução.” (CAMPOS, 2006, p. 36)

    É na palavra “válido” que encontramos uma chave muito importante para o ato político implicado na tradução: o que se considera válido? Restringir-se a uma tradição europeia, branca, burguesa, masculina, heteronormativa, por exemplo, é uma forma de não alterar padrões históricos de dominação cultural. As escolhas precisam mudar e estão mudando, abrindo espaço e lugar de fala para grupos sociais minorizados pelo pensamento etnocêntrico, colonialista, patriarcal, classista, racista, sexista.

    Tanto a escolha do objeto de tradução, quanto o modo de traduzir comportam uma ética. Uma tradução pode apagar marcas de diversidades culturais, suprimir traços ideológicos de um discurso, negligenciar características estéticas que se relacionem a questões de gênero, sexualidade, raça ou classe social, entre outras coisas. A partir da análise de traduções e transformações em performance de um poema de Safo, os críticos Flores e Gonçalves explicitam como o contexto patriarcal da sociedade romana, o pertencimento à aristocracia e os valores morais vinculados ao casamento interferem nas respectivas reperformances dos versos sáficos por Catulo e Horácio. Especialistas em textos antigos e suas performances contemporâneas, Flores e Gonçalves apresentam reflexões interessantes no ensaio em que resenham o livro de Charles Martindale dedicado à recepção de textos antigos; a ideia principal é que estes são constantemente reescritos e relidos em novas interpretações e o que temos acesso é a esse contínuo de recepções que tornam o texto legível ao longo do tempo, o que desfaz novamente a ideia de um original inamovível.

  • Ética na tradução [13/07 – 26/07]

    A tradução, com seu objetivo de fidelidade,

    pertence originariamente à dimensão ética.

    Ela é, na sua essência,

    animada pelo desejo de abrir

    o Estrangeiro enquanto Estrangeiro

    ao seu próprio espaço de língua.

    Antoine Berman

    Objetivos: Ao final desta unidade, você será capaz de refletir sobre a ética da tradução, enquanto modo de relação intercultural, permeada também por relações de poder desiguais. Poderá pensar sobre o contexto colonial da América e sobre as dinâmicas históricas de preservação e apagamento da memória cultural, através da tradução e da performance.

    Carga horária: 10h

    Apresentação do Conteúdo:

    Pode-se pensar uma prática colonizadora da tradução quando ocorre a submissão de literaturas minoritárias às normas das línguas hegemônicas e a minimização de diferenças culturais.

    Segundo Antoine Berman (2007, p. 30), “a tradução etnocêntrica nasce em Roma”, na Antiguidade, quando textos gregos são traduzidos de forma anexionista, ou seja, anexando-os à cultura de chegada, assim como territórios se anexavam ao Império romano, e adequando-os aos impulsos evangelizadores que vigoravam. De fato, diz Berman, a partir de uma citação de Nietzsche, “a romanidade se define em grande parte por um traducionismo conquistador e sem escrúpulo.” Neste processo de tradução, faltaria entre as culturas romana e grega uma relação dialógica; o que se observa é, ao contrário, uma relação de apropriação da cultura alheia e de submissão à cultura dominante por fatores bélicos ou econômicos.

    Contra a tradução etnocêntrica, o “ato ético” em tradução “consiste em reconhecer e em receber o Outro enquanto Outro” (BERMAN, 2007, p. 68), ou seja, acolher e não dominar. A tradução como acolhimento da diversidade cultural e linguística promove a abertura da língua e das concepções de mundo da cultura de chegada.

    No contexto colonial da América, a tradução serve também à dominação, funcionando, tanto como forma de conhecimento das culturas que a conquista territorial passava a subjugar, quanto como modo de doutrinação e catequização.

    Bernardino de Sahagún, por exemplo, foi um franciscano que chegou ao México em 1529, para empreender a evangelização. Para efetivar sua missão, tornou-se fluente na língua náhuatl, incorporou-se ao Imperial Colegio de Santa Cruz de Tlatelolco, onde ensinou latim aos filhos de nobres indígenas e realizou com grupos de alunos trilíngues um grande estudo dos nahuas do altiplano central. Em 1579, concluiu o Códice Florentino, composto por textos em náhuatl, espanhol e escritura pictográfica. Trata-se de um extenso trabalho etnográfico, de entrevistas com anciãos ao longo de anos, transcrições de orações, discursos, canções da tradição oral nahua e sua tradução para o espanhol. Entretanto, há muitas partes do códice que o frei renunciou a traduzir por considerá-las excessivamente idólatras, de linguagem “endiabrada” e obscura (CORONADO, 2013, p. 119).[3] Como afirma o estudioso Miguel León-Portilla, as idolatrias “somente poderiam ser erradicadas quando se conhecessem verdadeiramente as raízes mais ocultas do modo de pensar, crer e viver dos indígenas”. (León-Portilla Apud ALVIM, 2005, p. 54).

    É nesse sentido que o modelo de tradução que se estabelece é belicista, pautado no conflito entre as línguas, é colonizador da língua de partida e hostil em relação a ela.[4] Em oposição a esse modelo, Márcio Seligmann-Silva nos faz pensar em uma tradução baseada na ética da diferença e das relações interculturais.

    Quanto ao projeto de Sahagún, Diana Taylor explicita a tensão entre a memória e o esquecimento nele presente:

    "A 'preservação' servia como um chamado para o apagamento. A abordagem etnográfica do assunto oferecia uma estratégia segura para se lidar com materiais perigosos. Ela abria espaço, simultaneamente, para a documentação e o desaparecimento; os relatos preservavam hábitos 'diabólicos' como sendo sempre estranhos e inassimiláveis, transmitindo uma aversão profunda pelos comportamentos descritos." (TAYLOR, 2013, p. 77)

    Nesse contexto colonial nas Américas, a conquista territorial, a dominação econômica, a subjugação física e a doutrinação moral são acompanhadas por relações culturais, como as que se dão na aprendizagem de diversas línguas em contato e suas traduções, bem como a proibição do uso de línguas indígenas e a interdição de diversos ritos ou práticas incorporadas dos povos originários.[5] A essas práticas incorporadas, Diana Taylor chama performances, e elas vão desde as línguas faladas, as danças, os ritos, as vestimentas, os gestos e expressões que são reiteradas em certa cultura e que transmitem sua memória. O que ocorre no processo de conquista é que as performances indígenas, em todas essas dimensões, são desvalorizadas como episteme, como modos de produção de conhecimento, são banidas e substituídas por uma forma de saber, prioritariamente, oriunda do registro escrito da tradição cultural europeia-latina-cristã.  Como diz Taylor:

    "O momento inaugural do colonialismo nas Américas introduz dois movimentos discursivos que contribuem para desvalorizar a performance nativa, mesmo enquanto os colonizadores estavam profundamente empenhados em seu próprio projeto performativo de criar uma ‘nova’ Espanha a partir de uma imagem (idealizada) da ‘antiga’: 1) a rejeição das tradições de performance indígenas como episteme; e 2) a rejeição do ‘conteúdo’ (crença religiosa) como sendo objetos maus de idolatria." (TAYLOR, 2013, p. 68)

    A partir desta abordagem, as reflexões sobre tradução e performance se cruzam sob outra perspectiva. Não apenas a tradução como performance, mas também ambas como memória (e apagamento).



    [3] O projeto “Paleografía y traducción del Códice florentino” realiza, desde 2005, o trabalho de transcrever, paleografar e traduzir os livros que compõem o Códice Florentino. Integram o projeto diversos pesquisadores, principalmente da UNAM, e os resultados são publicados na Revista Estudios de Cultura Náhuatl (<http://www.revistas.unam.mx/front/>), desde o volume 42 (2011).

    [4] Para compreender esta noção de tradução belicista e colonizadora, propomos a leitura do texto de Seligmann-Silva, onde analisa a concepção de tradução como Versetzung, de Herder, como dialógica no sentido em que promove o deslocamento do leitor na direção da língua e cultura de partida; porém, as diferenças entre línguas/culturas, embora consideradas, seguem sendo tratadas de modo belicista, subjugando a cultura de partida à de chegada, de modo semelhante à noção de tradução como belle infidèle. “Esta última, que era praticada nos séculox XVII e XVIII (mas também em nossos dias), é ‘colonizadora’ da língua de partida. Ela submete o ‘outro’ à lei da casa, do anfitrião. Ela é anti-hospitaleira. Segue a lei da hostilidade e não da hospitalidade.” (Seligmann-Silva, 2018, p. 209)

    [5] Os mandatos de proibição do uso de línguas indígenas se sucedem ao longo do período colonial. Em 1770, por exemplo, o rei Carlos III ordena a interdição do uso de qualquer idioma indígena, a fim de extingui-los e impor o monolinguismo castelhano nas colônias espanholas.

  • Performance em tradução [27/07 – 09/08]

    A voz é uma subversão ou uma ruptura da clausura do corpo.

    Paul Zumthor

    Objetivos:

    Nesta unidade, convidamos a refletir sobre uma concepção ampliada de poesia, onde as manifestações orais e gestuais possam ser contempladas. Também será retomada a reflexão sobre as relações entre a voz e a comunidade. Você encontrará argumentos para pensar a respeito da relevância de teorias e práticas em tradução e performance nos embates culturais e políticos, no sentido de promover forças contracoloniais.

    Carga horária: 10h

    Apresentação do conteúdo:

    O escritor Kaká Werá conta em uma entrevista para o Itaú Cultural[1] que, em sua tradição Tapuia, Tupã cria os mundos através do canto de sons vocálicos. A partir do canto das vogais, vão se formando as estrelas, a Mãe Terra e, posteriormente, a primeira vida humana que passa a habitá-la. Esse modo de cantar é um modo de guardar a memória dessa cosmogonia, essa explicação da origem e da cocriação da vida na Terra.

    No ensaio “Palavras de música”, Flores e Gonçalves remetem às canções de esquimós como um exemplo de “canções cujas palavras estão subordinadas à música” (FLORES e GONÇALVES, 2017, 53), onde se cantam sílabas sem sentido e as palavras significantes são menosprezadas, ou não possuem tanta relevância, pois o que importa seria o som, a vibração, a criação de um tempo de escuta e de um espaço de partilha sensível na comunidade. É nesse sentido que Zumthor (2014, p. 62) fala sobre a voz como “motor essencial da energia coletiva”.

    Da perspectiva dos estudos culturais, ampliar o conceito de literatura, que é algo que pode ser identificado historicamente com a civilização europeia e um período que se situa entre os séculos XVII ou XVIII e hoje (cf. ZUMTHOR, 2014, p. 16), permite considerar as manifestações apontadas nos parágrafos acima como poesia, ou poesia vocal, como a definiria Zumthor. Tanto ele quanto Diana Taylor preferem esta nomenclatura e não “literatura oral”, pois esta indica que o “oral já foi transformado em literatura”,  ou o repertório já foi transferido para o arquivo (TAYLOR, 2013, p. 58).

    Um dos trabalhos relevantes realizados nesse sentido é o de Jerome Rothenberg, que reuniu, em diversas antologias, as traduções de poemas-canções ameríndios. Com o conceito de etnopoesia, na década de 1960, Rothenberg procurou abarcar o que fora deixado às margens da poesia canônica ocidental, considerado como primitivo ou selvagem. Em uma série de antologias organizadas entre 1968 e 1999, Rothenberg reuniu e traduziu poemas da África, América, Ásia e Oceania, destacando seus aspectos vocais, performáticos e suas relações com a poesia vanguardista do século XX na Europa. Uma das grandes questões apontadas por Rothenberg nesse processo é a dificuldade de traduzir para a língua inglesa escrita a poesia de performance com a qual estava lidando; uma poesia conformada por elementos não “literalmente traduzíveis” (ROTHENBERG, 2006, p. 38), elementos vocais, sonoros, gestuais. Para dar conta desse desafio, ele cria o conceito de “tradução total” e explora os aspectos visuais, gráficos, da poesia escrita, dialogando, por exemplo, com a poesia concreta.

    Uma das questões que me parece muito importante destacar está nas declarações de intenções escritas em 1970 por Dennis Tedlock & Jerome Rothenberg, por ocasião do lançamento da primeira “revista das poesias tribais do mundo”: Alcheringa. Ali se manifesta, entre outras, a provocação de “ajudar o livre desenvolvimento da autoconsciência étnica entre jovens índios & outros igualmente interessados, encorajando um respeito inteligente & amoroso, entre eles & todas as pessoas, pelo passado & presente tribal do mundo – para combater o genocídio cultural em todas as suas manifestações.” (ROTHENBERG, 2006, p. 64)

    Infelizmente, 50 anos se passaram e o genocídio cultural continua sendo praticado, bem como a tentativa de extermínio físico de diversos povos, comunidades e grupos sociais minorizados por uma cultura que se impõe como hegemônica, amparada por poderes institucionais, políticas governamentais e consentimento, ou ao menos isenção, de parte da sociedade civil.



    [1] “Kaká Werá – culturas indígenas (2016)”, Itaú Cultural. Disponível:   (Acesso 22/05/2020)
  • Referências

    ALVIM, Márcia Helena. “Um franciscano no novo mundo: frei Bernardino de Sahagún e sua Historia General de las Cosas de Nueva España”. Estudos Ibero-Americanos. XXXI. 1 (2005): 51-60. Portal de Periódicos da PUCRS. <file:///C:/Users/ULTRAB~1/AppData/Local/Temp/1325-4782-2-PB.pdf>

    BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras/PGET, 2007.

    CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como criação e como crítica” (1962). In: ______. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2006, pp.31-48.

    ______. Da transcriação. Poética e Semiótica da operação tradutória. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011.

    CORONADO, Tomás Serrano. “El silencio del traductor”. Mutatis Mutandi. 6. 1 (2013): 113-125. Dialnet. 02/12/2019 file:///C:/Users/ULTRAB~1/AppData/Local/Temp/Dialnet-ElSilencioDelTraductor-5012599.pdf

    FLORES, Guilherme G.; GONÇALVES, Rodrigo T. Algo infiel. Corpo, performance, tradução. Fpolis: Cultura e Barbárie, SP: n-1 edições, 2017.

    ROTHENBERG, Jerome. Etnopoesia no milênio. Organização de S. Cohn. Tradução de Luci Collin. Rio de Janeiro: Azougue, 2006.

    SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2ª. Edição. São Paulo: Editora 34, 2018.

    TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório. Performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

    ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de J. Ferreira e S. Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.