Neovocalidade e Intermidialidade

Neovocalidade e Intermidialidade

Neovocalidade e Intermidialidade

por Mateus dos Passos Maba -
Número de respostas: 2

Artes performáticas são anteriores à escrita. Por isso, soa natural que a oralidade apresente maior visibilidade do que a leitura. Então, a ideia de que existe uma rejeição ao modelo escrito (causada pela ampliação do “universo de neovocalidade”) tem de ser vista com ceticismo.

             Não existe contradição entre vocalidade e leitura, no sentido de que o crescimento de uma implica na decadência da outra. Os mesmos processos culturais e científicos que ampliaram a neovocalidade, expandiram o universo da palavra escrita.

            Inclusive, os dois modelos de comunicação relacionam-se de forma cada vez mais íntima. Os vídeos de Bia Ferreira, Luiza Romão e Marcia Kambeba exemplificam essa afirmação com bastante clareza, tendo em vista que as autoras falam diretamente sobre elementos do universo da leitura. Seguem abaixo as evidências disto.

Bia Ferreira discorre sobre o conceito “necropolítica” do livro homônimo de Achille Mbembe, fazendo referência direta ao autor. Luiza Romão, por sua vez, tem o discurso estruturado no próprio ato de escrever: “Eu queria escrever a palavra Brasil”, “a caneta num ato de legítima revolta”. E Marcia Kambeba, em determinado momento, trata da presença de mulheres indígenas em universidades, um local onde a comunicação escrita é da mais alta relevância.

Em resposta à Mateus dos Passos Maba

Re: Neovocalidade e Intermidialidade

por Vivianne Oliveira Rodrigues -

Eu não vi realmente uma oposição, realmente [dois "realmente" muito próximos] elas teoricamente podem andar juntas; aliás, num mundo ideal, elas só se apoiam. Porém, a escrita foi e ainda é usada como ferramenta para excluir as formas de expressão oral, como parte de um processo civilizatório colonizador, que descamba até os dias de hoje, por isso tanta vocalização das pessoas e dos grupos que foram calados, por isso tanta importância dada às vozes. A contradição entre leitura e vocalidade existe na prática, na medida em que os corpos que se utilizam de cada uma delas estão em desigualdade social, ou seja, na medida em que saímos da teoria e olhamos os corpos e as pessoas em suas performances e notamos diferenças e desigualdades. Afinal, não é todo mundo que domina a leitura e a escrita para poder se expressar e reivindicar o que lhe cabe.

Em resposta à Mateus dos Passos Maba

Re: Neovocalidade e Intermidialidade

por Eleonora Frenkel Barretto -

Boas ponderações, Mateus.

Veja, creio que não se trata de colocar a rejeição do modelo escrito como consequência da ampliação do universo da neovocalidade. Especificamente o desinteresse pela leitura em parte da juventude é algo que se pode explicar por aspectos culturais e históricos também. Mas me parece que o advento dos meios eletrônicos tende a desestimular a leitura nas gerações de fim do século XX e século XXI. 

Acho que é bem observado que há uma relação de retroalimentação no campo das artes e que escrita, a vocalização e a performance, mediatizada ou não, estão interconectadas.

O que é fundamental destacar é que, no contexto colonial, houve de fato uma destruição sistemática da oralidade e super valorização do saber letrado. Destaco uma passagem de Diana Taylor:

"O que mudou com a conquista não foi que a escrita deslocou a prática incorporada (precisamos apenas lembrar de que os jesuítas trouxeram suas próprias práticas incorporadas), mas o grau de legitimação da escrita em relação a outros sistemas epistêmicos e mnemônicos. A escrita agora assegurava que o Poder, com P maiúsculo, conforme Rama, poderia ser desenvolvido e imposto sem a opinião da grande maioria da população, os indígenas e as populações marginais do período colonial, sem acesso à escrita sistemática. Os colonizadores não apenas queimaram os códices antigos, mas também limitaram o acesso à escrita a um grupo muito pequeno de homens conquistados que eles sentiam que promoveriam esforços evangélicos. Enquanto os conquistadores se esforçaram por elaborar, ao invés de transformar, uma prática de elite e um determinado arranjo de poder baseado no gênero, a importância dada à escrita aconteceu às custas das práticas incorporadas como modos de conhecimento e de fazer reivindicações. Aqueles que controlavam a escrita – primeiro os frades e, em seguida, os letrados – ganharam poder excessivo. [..]

Práticas não verbais – como dança, ritual e culinária, entre outras -, que há muito tempo serviam para preservar um senso de identidade e de memória comunitária, não eram consideradas formas válidas de conhecimento. Muitos tipos de performance, considerados idólatras por autoridades religiosas e civis, foram totalmente proibidos. Asserções manifestadas por meio da performance – seja a ação de amarrar as vestes para significar casamento ou reinvindicações de terra performatizadas – deixaram de conter valor legal Aqueles que tinham dedicado suas vidas a estudar as práticas culturais, como esculpir máscaras ou tocar música, não eram considerados ‘especialistas’, uma designação reservada aos pesquisadores formados por meio de livros. À medida que a Igreja substituía suas próprias práticas performáticas, os neófitos não poderiam mais pretender utilizar seu conhecimento ou a tradição para legitimar sua autoridade. A fratura, a meu ver, não é entre a palavra escrita e falada, mas entre o arquivo de materiais supostamente duradouros (isto é, textos, documentos, edifícios, ossos) e o repertório, visto como efêmero, de práticas/conhecimentos incorporados (isto é, língua falada, dança, esportes, ritual).” (D. Taylor, Arquivo e repertório, 2013, pp. 47-48)