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Vozes-mulheres, Conceição Evaristo

Vozes-mulheres, Conceição Evaristo

por Fernanda Porto Correa -
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Trago Conceição Evaristo porque penso nela sempre que a subversão da tradição se faz urgente. Lançando mão da tecnologia da escrita, ela registra no sistema parte de uma oralidade, memória e herança estruturalmente rechaçadas. Também porque vejo diálogo com o conteúdo das vozes femininas performáticas dos vídeos sugeridos. As palavras dela, aqui elencadas, recuperam um Brasil de berço cínico e perverso, mas que se abre a um futuro menos árido ao nascer de novas flores estridentes, oriundas de solo nutrido com sangue. Sua escrevivência (termo dela para uma escrita que nasce do cotidiano), propõe reviver e anotar gritos reprimidos, emoções vetadas e referências contestadas em uma terra negacionista e sumariamente inescrupulosa. Algo que sentimos no corpo e que não nos encerra na solidão tão comum ao ato de ler. É desespero, é beleza, é arrepio, é choro, é catarse. De alguma forma, como uma possessão, ela e todos que evoca nos invadem sem licença sempre que lidos/ouvidos. 

Por fim, tomo a liberdade de indicar uma leitura da mesma obra por meio do vídeo abaixo. Muito obrigada!

Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.