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Solidão em fagulhas

Solidão em fagulhas

por Gabrielly de Araujo Scarabelot -
Número de respostas: 1

Olá!

 

Ótimos os textos compartilhados até agora! Estou gostando muito!

 

Gostaria de compartilhar a crônicaPovoar A Solidão”, de Martha Medeiros, que li há alguns anos, na adolescência. Lembrei de ter gostado dela ao pensar sobre o que postaria nesta atividade e relendo-a notei um trecho que achei ter a ver com os apontamentos de Paul Zumthor no primeiro texto, onde diz que, embora de “grau performancial mais fraco” em relação a performance, na leitura também há forte presença corporal (p. 68): “Leia, e seu silêncio ganhará voz”, em destaque na transcrição abaixo. Além disso, foi para mim uma injeção de ânimo para continuar enfrentando as horas de solidão nesse isolamento.

 

POVOAR A SOLIDÃO

 

A sua é de que tamanho? Difícil encontrar alguém que tenha uma solidão pequena, ajustada, do tipo baby look. Geralmente, a solidão é larga, esgarçada, como uma camiseta que poderia vestir outros corpos além do nosso. E costuma ser com outros corpos que se tenta combatê-la, mas combatê-la por quê?

Se nossa solidão pudesse ser visualizada, ela seria um vasto campo abandonado, um estádio de futebol numa segunda-feira de manhã. Dói, mas tem poesia. Talvez seja por aí que devamos reavaliá-la: no reconhecimento do que há de belo na sua amplitude.

A solidão não precisa ser aniquilada, ela só precisa de um sentido. Eu não saberia dizer que outra coisa mais benéfica para isso do que livros. Uma biblioteca com mil volumes é um exército que não combate a solidão, mas a ela se alia.

A solidão costuma ser tratada como algo deslocado da realidade, como um tumor que invade um órgão vital. Ah, se todos os tumores pudessem ser curados com amigos. Uma pessoa que não fez amigos não teve pela sua vida nenhum respeito. Nossa solidão é nossa casa e necessita abrir horários de visita, hospedar, convidar para o almoço, cozinhar com afeto, revelar-se uma solidão anfitriã, que gosta de ouvir as histórias das solidões dos outros, já que todos possuem seus descampados.

A solidão não precisa se valer apenas do monólogo. Pode aprender a dialogar e deve exercitar isso também através da arte. Há sempre uma conversa silenciosa entre o ator no palco e o sujeito no escuro da platéia, entre o pintor em seu ateliê e o visitante do museu, entre o escritor e o seu leitor desconhecido. Ah, os livros, de novo. De todos os que preenchem nossa solidão, são os livros os mais anárquicos, os mais instigantes. Leia, e seu silêncio ganhará voz.

Às vezes, tratamos nosso isolamento com certa afetação. Acendemos um cigarro na penumbra da sala, botamos um disco dilacerante e aguardamos pelas lágrimas. Já fizemos essa cena num final de domingo - tem dia mais solitário? É comum que a gente entre na fantasia de que nossa solidão daria um filme noir, mas sem esquecer que ela continuará conosco amanhã e depois de amanhã, deixando de ser charmosa e nos acompanhando até o supermercado. Suporte-a com bom humor ou com mau humor, mas não a despreze.

Permita que sua solidão seja bem-aproveitada, que ela não seja inútil. Não a cultive como uma doença, e sim como uma circunstância. Em vez de tentar expulsá-la, habite-a com espiritualidade, estética, memória, inspiração, percepções. Não será menos solidão, apenas uma solidão mais povoada. Quem não sabe povoar sua solidão, também não saberá ficar sozinho em meio a uma multidão, escreveu Baudelaire.

Ah, os livros, outra vez.

 

11 de novembro de 2007

 

Retirada do livro “Doidas & Santas”.

 

Gostaria de compartilhar também a minha leitura de “Fagulhas”, de Ana Cristina Cesar, que está entre os meus preferidos da autora, mas não sei explicar, só sentir. Deixo sua transcrição em seguida.

 

FAGULHAS

 

Abri curiosa

o céu.

Assim, afastando de leve as cortinas.

 

Eu queria entrar,

coração ante coração,

inteiriça

ou pelo menos mover-me um pouco,

com aquela parcimônia que caracterizava

as agitações me chamando.

 

Eu queria até mesmo

saber ver,

e num movimento redondo

como as ondas

que circundavam, invisíveis,

abraçar com as retinas

cada pedacinho de matéria viva.

 

Eu queria

(só)

perceber o invislumbrável

no levíssimo que sobrevoava.

 

Eu queria

apanhar uma braçada

do infinito em luz que a mim se misturava.

 

Eu queria

captar o impercebido

nos momentos mínimos do tempo

nu e cheio.

 

Eu queria

ao menos manter descerradas as cortinas

na impossibilidade de tangê-las.

 

Eu não sabia

que virar pelo avesso

era uma experiência mortal.

 

Retirado do livro “A Teus Pés”.

 

 

Por enquanto é isso. Até logo!

 

Em resposta à Gabrielly de Araujo Scarabelot

Re: Solidão em fagulhas

por Eleonora Frenkel Barretto -

Belas escolhas. Lindos textos. O primeiro me lembrou o episódio de uma série que assisti ontem, sobre Simón Bolívar: o professor lhe dá a tarefa de encontrar certo tipo de orquídea no meio da mata, na qual deve se embrenhar sozinho e retornar à escola somente depois de encontrar a flor; sua única companhia nessa empreitada é um livro, Robson Crusoé, onde ele poderia encontrar tudo que precisasse saber se ficasse perdido.